Como a guerra na Ucrânia acelera a transição para energia limpa na Alemanha
Não se trata mais apenas da crise climática: por razões de segurança nacional, o país precisa urgentemente se livrar do gás, do petróleo e do carvão russos.
O governo alemão quer facilitar a construção de turbinas eólicas como estas, em construção no mês passado perto de Angermünde, a cerca de 65 quilômetros a nordeste de Berlim. Novas leis para acelerar a transição das energias renováveis reduzirão o impacto climático do país – e sua dependência dos combustíveis fósseis russos.
Berlim, Alemanha | Quando as tropas russas invadiram a Ucrânia nas primeiras horas de 24 de fevereiro, a Alemanha acordou para uma realidade desagradável: a Rússia é seu principal fornecedor de energia, enviando ao país mais da metade do suprimento de gás natural e carvão, além de um terço do petróleo bruto. Em troca, a Alemanha manda para a Rússia o equivalente a mais de R$ 1 bi por dia – dinheiro que agora está ajudando a financiar uma invasão que os alemães consideram intolerável.
No mês passado, a ministra alemã das Relações Exteriores, Annalena Baerbock – que é líder do Partido Verde e entrou em um governo de coalizão com os social-democratas do primeiro-ministro Olaf Scholz no outono passado – prometeu que a Alemanha deixaria de importar petróleo da Rússia até o final de 2022. E também se livraria do gás natural russo o mais rapidamente possível. No curto prazo, isso pode significar fornecedores alternativos de combustíveis fósseis, incluindo os Estados Unidos.
Mas, a longo prazo, a crise apenas reforçou a determinação da Alemanha de abandonar totalmente os combustíveis fósseis e acelerar a Energiewende – a transição para energia limpa que começou há cerca de 30 anos. O governo anunciou planos de abandonar totalmente o carvão até 2030, oito anos antes da meta estabelecida pelo governo anterior. Agora, pretende que a Alemanha obtenha 80% de sua eletricidade a partir de energia renovável, até então, acima da meta anterior de 65% – e quase o dobro da participação de 42% fornecida em 2021.
Um pacote de legislação anunciado no mês passado e que deve ser aprovado neste verão aumentaria os subsídios para energias renováveis e pretende reduzir a burocracia que atrasou esses projetos no passado.
“O que mudou agora é que todos perceberam que precisamos aumentar a capacidade renovável ainda mais rápido”, diz Matthias Buck , diretor para a Europa da Agora Energiewende, um think tank que se concentra na transição energética. “A guerra está deixando muito claro que, se você deseja controlar seu próprio destino, é melhor priorizar as energias renováveis e acabar com a dependência de combustíveis fósseis.”
A Alemanha não está sozinha: a França, há muito dependente de reatores nucleares para 70% de suas necessidades de energia, prometeu um grande impulso por mais energias renováveis. Durante sua recente campanha de reeleição, o presidente francês Emmanuel Macron prometeu que a França seria “a primeira grande nação a abandonar o gás, o petróleo e o carvão”. A Áustria, ainda mais dependente da energia russa do que a Alemanha, está oferecendo subsídios para energia renovável. Até a Polônia, um dos maiores consumidores de carvão da Europa, está investindo pesadamente em energia eólica offshore.
Na Alemanha, a guerra na Ucrânia acrescentou um argumento de segurança energética à crise climática, como forma de convencer as pessoas da necessidade urgente de uma Energiewende. “Estamos bem adiantados, mas não tão longe quanto deveríamos”, diz Kathrin Henneberger, parlamentar do Partido Verde e ex-ativista climática.
A doentia dependência do petróleo
Até o início da guerra, a Alemanha se apoiava cada vez mais na energia russa, principalmente no gás natural. É difícil escapar dos lembretes da dependência do país em relação ao gás: em Berlim, as chaminés de uma usina a gás natural pontuam o horizonte a menos de três quilômetros do prédio do parlamento, o Bundestag; a capital ainda ilumina algumas de suas ruas com 20 mil antigos postes de gás. Uma rede de oleodutos de 511 mil km de comprimento cruza o país, fornecendo gás para casas, fábricas e usinas de energia.
Durante décadas, quase todo o establishment político alemão acreditou na ideia de que estava certo – e era até estrategicamente sábio – importar a maior parte de seu gás da Rússia. Desde a invasão russa na Ucrânia, porém, o país tem sido atormentado por recriminações.
“Todos nós sabíamos que Putin não era um defensor dos direitos humanos. Todos sabíamos que estávamos enchendo seu fundo de guerra”, diz Henneberger. “O conhecimento estava lá, mas a Alemanha ainda se tornou cada vez mais dependente ao longo dos anos. Agora, de repente, as pessoas perceberam que era uma ideia terrível.”
Seu partido e seus parceiros no novo governo de coalizão estão agora cumprindo as promessas pré-invasão de aumentar o apoio às energias renováveis, em um esforço liderado por outro líder do Partido Verde, o ministro da Economia e Clima, Robert Habeck. O projeto de lei declararia que a energia renovável é “do interesse público primordial e serve à segurança pública” – o que parece anódino, mas tornará mais fácil para os projetos renováveis superar desafios legais e ambientais e obter licenças.
Em 6 de abril, manifestantes se reuniram em frente ao prédio do parlamento alemão, em Berlim, para protestar contra a invasão da Ucrânia pela Rússia. Eles exigiram um embargo aos combustíveis fósseis russos – embora, por enquanto, a Alemanha continue fortemente dependente dessas importações, especialmente gás natural.
O pacote legislativo inclui também incentivos mais concretos. Voltando às raízes da Energiewende, as medidas devem encorajar, mais uma vez, os cidadãos a implantar energia solar no telhado ou a construir usinas solares comunitárias; novos edifícios comerciais serão obrigados a incluir painéis solares. O governo federal também pressiona alguns estados alemães a relaxar as leis que proíbem moinhos de vento a um quilômetro de edifícios existentes – o que neste país densamente povoado faz com que seja cada vez mais difícil instalar novas turbinas.
Legisladores esperam que todas essas mudanças, combinadas com a queda constante dos preços das instalações solares e eólicas, tornem possível dobrar a geração de energia eólica terrestre até 2030 e quadruplicar a energia solar. A energia eólica offshore também será expandida drasticamente.
O problema do gás
Na medida em que esses planos entravam em vigor antes do início da guerra na Ucrânia, eles dependiam mais do gás natural russo – que permitia ao país fechar usinas a carvão com emissões pesadas enquanto construía seu setor renovável. Esse conceito agora está sendo questionado.
“O gás natural era visto como uma ponte para o futuro da energia limpa”, diz Buck. “Aquela ponte quebrou. Isso está reformulando a discussão.” A Alemanha já congelou o processo de aprovação de um oleoduto de R$ 56 bi da Rússia chamado Nordstream 2, que estava quase concluído quando a Rússia invadiu a Ucrânia.
Agora, até ambientalistas obstinados estão discutindo manter as usinas de carvão abertas além da meta acordada para 2030 – mas apenas em uma crise de curto prazo, diz Henneberger: “Tomamos uma decisão de longo prazo de nos afastarmos do carvão, e isso não pode mudar”.
Um retorno à energia nuclear também está fora da mesa, diz ela. A Alemanha decidiu há uma década, após o desastre de Fukushima no Japão, eliminar gradualmente suas usinas nucleares. As três últimas devem ser desligados até o final deste ano.
Assim, a única opção da Alemanha para substituir o gás natural russo nos próximos anos é encontrar novos fornecedores de gás natural – e pressionar ainda mais para mudar para fontes renováveis.
Não se trata apenas de eletricidade
A Energiewende está mais adiantada no setor elétrico, mas a guerra na Ucrânia também destacou o trabalho ainda necessário em outros setores – transporte, manufatura, aquecimento – para levar a Alemanha a sua meta de emissões líquidas zero até 2045. Especialistas dizem que a opinião pública está mudando, talvez tornando possíveis passos mais ambiciosos em um futuro próximo.
Considere a ideia de introduzir um limite de velocidade em toda a rede Autobahn, onde motoristas zunindo legalmente a 160 km/h ainda são comuns. Mas a questão é polarizadora na Alemanha, uma sociedade tradicionalmente louca por carros.
“Antes da guerra, os alemães estavam 50/50 na ideia”, diz Volker Quaschning, professor de sistemas de energia renovável da Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. “Agora, dois terços dizem que é uma boa ideia. O mesmo vale para o uso de aquecimento fóssil ou carros a diesel, ou a instalação de mais energia eólica. Houve uma grande mudança na opinião pública.”
Fonte: nationalgeographicbrasil.com